terça-feira, 3 de março de 2020

carcaça da vida!

Constatei aos poucos,
pequenos pedaços de mim,
empapados no chão,
dilacerada,
esventrada,
é assim que me vejo,

no chão, sangrento,
a esvair-me em sangue,
mas em paz,
serena.
completamente estropiada,
sem folgo,
um respirar ténue,
uma amálgama de cores,
um espectáculo dificil de encarar
tirando o meu rosto, com semblante tranquilo,
sem dor,
quem observe até pode verificar um ligeiro traço de felicidade,
tranquilidade,
de olhos cerrados,
com brilho a rasgar o cenário,
sem filtros,
está tudo ali,
a luz prevalece,
aclara o que se pode querer esconder,
tudo é visivel,
desde as entranhas,
ao tremor dos lábios,
não há sofrimento perceptível,
tudo está calmo,
a natureza com o seu ciclo,
e eu ali, a fazer parte da natureza,
numa primavera eminente,
as flores florescem,
os animais movem-se lentamente sobre mim, curiosos,
não se atrevem a espezinhar-me,
existe um certo respeito pelo cenário dantesco,
calculo que têm planos para mim,
não sei se sabem que ainda sou eu ali,
mas a minha inação permite-lhes planear com tempo,
penso que me querem para muitas funções.
é sempre importante sermos úteis,
seja em que cenário for...
concentro-me na brisa,
não é desagradável,
atenua qualquer pensamento menos bom,
e permite-me sentir liberdade,
depois começo a pensar se sinto falta do meu corpo,
ele precisaria de terapia, maltratei-o muito,
quando lhe dizia quão horrível era,
que tinha peso a mais,
que os contornos não eram os que gostaria,
que os outros eram melhores que ele! odeio-te!
queria trocar por outros,
dei-o a troco de nadas,
e a troco de tudos,
não o valorizei, não o mimei,
sempre o dei como dado adquirido,
simplesmente alojava nele as minhas tensões,
frustrações e lampejos de excessos.
a vê-lo ali dilacerado,
quis-lhe agradecer a sua resistência,
que bravo que foi!
seriam poucos a suportar-me, firmes!
dentro de todas as suas imperfeições, conseguiu ser imune a todo o negativismo,
às intempéries do tempo,
e ainda de quando em vez fazer virar cabeças masculinas,
afinal, foste um bom corpo!
Lá está só agora o reconhecimento,
quando não resististe.

continuo aqui!
apesar de tudo,
acredito que vou ficar mesmo para semente,
esse será o meu fim,
porque não sou de vergar,
e não quero respirar em vão.

a sensação é que não devo resistir mais,
posso desistir,
posso deixar cair,
já não preciso de lutar, por tudo e por nada,
por coisa nenhuma,
posso descansar,
sem culpas,
sem stress,
e apenas ficar ali sem ter que sentir algo,
sentir nada,
pensar nada,
viver nada,
dizer nada,
apenas estar,
apenas ser,
sentir vazio,
entendiar-me,
esvaziar-me,
largar-me,
des-panicar-me,
desenraizar-me,
voltar ao pó,
e sentir a terra em mim,
e crescer de novo,
sem cor,
sem voz,
sem vida.

semente sem genes,
grão sem odor,
raiz solta,
ao vento,
ao sol,
à chuva.
e sem corpo,
invisivel,
incolor,
indolor,
inconstante,
invertebrada,
insensível,

as letras teimam em continuar a surgir,
a levantar-se temas,
a insurgir-se e a provar vida,
o conteúdo deixou de ser interessante,
não importa o quê,
os pensamentos atropelam a vida,
e a morte,
não são permeáveis a palavras, nem a convicções,
não vergam à natureza, nem à constatação das evidências,
nem a tristeza,
nem a riqueza,
nem  a alegria,
a única coisa que me verga o pensamento,
é algo penoso,
que não se condói com um corpo desfeito,
com uma alma ausente,
com feridas de 3º grau,
nem os abutres me atrapalham,
é na indiferença que culmina a minha inquietação,
é sentir que não causei impacto,
que não signifiquei nada,
que não toquei nada,
que não fui nada,
que fui desprezada,
que fui ignorada,
que fui desconsiderada,
como se um nada fosse,
como se pudesse ser esquecida,
com marcas inesquecíveis em mim,

provo do meu veneno,
que descarto de mim o que não me traz novidade.
como se nada tivesse sido,
o que foi tão importante em outros momentos,
e de repente eis que não é nada,
ficam memórias efémeras,
de factos,
ficam memórias de sentimentos,
que não consigo replicar no sentir,
nem acreditar,
parece que foi somente uma ilusão,
que na altura me fez vibrar,
mas que não gerou raiz,

um papel que atribuo com facilidade,
mas que acho inadmissível para mim,
não o consinto,
não o aceito,
não, não, posso ter sido descartável,
não posso ter sido usada,
não posso ter sofrido em vão,
tamanha humilhação, não!
Corpo! Mente! Vida insana!
Não creio!
Não consinto!
Não aceito!
Não posso ter sido, alguém que foi ludibriada, manipulada e descartada!
Não posso! Mas fui!
Mas não consigo ainda aceitar!
não me consigo enlutar,
que me devorem os animais,
que me gritem,
que me persigam,
não posso aceitar que acreditei tanto numa mentira,
vivi uma mentira?
como aceitar que senti uma mentira?